Sobre paixões, diplomas e cabelos

reconstruindo práticas e fios quebradiços

Virginia Valbuza
5 min readOct 17, 2020

Comecei minha jornada universitária lá em 2012, quando entrei nas Ciências Sociais. Desde então, já passei por mais dois cursos: Terapia Ocupacional, para onde me transferi, e Letras, que acabei caindo de gaiato agora em plena pandemia. Áreas completamente distintas, saberes um tanto diferentes e, ainda assim, me interessei no estudo de todas elas.

Loucura, não? Pois é. Mais louco ainda é pensar que, de todas essas experiências, o único diploma de formação que tenho para apresentar até então é de cabeleireira.

Para algumas pessoas, esta trajetória talvez pareça um pouco estranha. E quer saber? Eu também acho. Três tentativas de graduação, nenhuma conclusão até então e, ainda assim, um curso de cabeleireira para chamar de meu. Nunca pensei que esta seria minha história, mas, apesar de tudo, tenho orgulho deste diploma e de tudo que aprendi com ele. E nem dá para dizer que foi uma surpresa: passei boa parte da minha vida fuçando a internet atrás de conhecimentos capilares e fazendo loucuras com minhas próprias madeixas. Aliás, por algumas vezes, até fui relapsa com as leituras acadêmicas por me dedicar demais a saber sobre propriedades nutritivas ou reconstrutoras para os fios. Sem querer, acabei me apaixonando pela área e sonhando com uma grande carreira nela. Nada mais justo que correr atrás de profissionalização, não?

Mas quando enfim estava formada e comecei a oferecer atendimentos pras amigas, aí o trem ficou estranho. Apesar de ter os conhecimentos ali, na ponta da língua, nem sempre isso foi o suficiente. Usei exatamente a técnica aprendida em determinado corte, mas ainda assim não ficou como eu queria — e provavelmente nem como a pessoa queria. Usei todos os meus conhecimentos de coloração naquela pigmentação, mas talvez por causa de algum outro procedimento anterior, nada saiu como o planejado. A experiência que eu tentava construir foi bem o que me faltou para compreender que bom, o começo não é fácil para ninguém. Mas isso não impediu que a frustração chegasse com os dois pés no meu peito e, quando enfim não aguentei mais essa angústia, parei com os atendimentos.

A vida tem dessas coisas, né? Hoje trabalho em uma área bem diferente e, mesmo que não planeje de fato ser cabeleireira num futuro próximo, admito que até sinto saudades de mexer com isso de vez em quando. Ainda me pego assistindo uns vídeos de cortes e transformações, ou então pesquisando a respeito de novos produtos para cuidar dos cachos de meu companheiro. Por um momento, depois de dar minha carreira como encerrada, cheguei a pensar que meu interesse na área foi mesmo algo passageiro, como tantas outras coisas em minha vida. Fico feliz em perceber que estava enganada.

gif animado do personagem Bob Esponja penteando e secando seus cabelos

Pode soar meio bobo, mas a inconstância é uma constante em minha vida. Se hoje quero realizar uma coisa, amanhã já penso em algo diferente. Foi assim ao entrar na faculdade, ao fazer meu curso de cabeleireira, ao entrar na empresa em que trabalho hoje e até com as artes que já experimentei. Estou sempre em busca de mais conhecimento, mais experiências, mais possibilidades e mais vivacidade. Ter sonhos diferentes, trabalhos diferentes, graduações diferentes, cidades diferentes e, porque não, cabelos diferentes, é meu modus operandi — e ainda bem. A real é que não sei ser de um só lugar, de fazer uma coisa só ou me definir com um só aspecto. Adoro experimentar tudo que me vem à cabeça e me reinventar quando dá na telha.

Tentar uma carreira como cabeleireira foi, sem dúvidas, uma dessas inconstâncias. Achei que enfim tinha encontrado meu lugar ao mundo, mas não demorou muito pra sacar que esse trabalho não era pra mim. Até aprendi a lidar com cabelos, mas só mesmo o tempo nos ensina a lidar com a pessoa que os detém. Depois que a ficha caiu, cheguei a pensar que esse meu interesse por cabelos foi apenas mais uma fase que levei longe demais. Sem vontade de continuar com os atendimentos, pensei até que foi tudo em vão. E depois de tanta alegria e realização com meu curso, sentir que não valeu a pena foi um tombo maior do que posso descrever.

Mas basta tocar em um cabelo que ainda me sinto como aquela mesma adolescente fissurada por cremes de hidratação no passado. Basta ver alguns vídeos sobre cortes malucos que sinto o mesmo de quando eu mesma empunhava a tesoura. Até mesmo montar um simples cronograma capilar para meu companheiro me traz de volta certo brilho nos olhos, o que poucas coisas são capazes de fazer. Foquei tanto na tristeza de ver minha carreira como cabeleireira afundar que até me esqueci que paixões não dependem de profissão. E mesmo sabendo que esta é uma das minhas loucuras de sempre, isso não diminui o que sinto toda vez que cuido de um cabelo — e é isso que importa.

Não me canso de dizer que hoje, enfim, entendo que não ter um lugar no mundo é uma grande potência. Entender que não preciso me definir por uma coisa só é o que me permite sair em busca de tantas novas experiências e sensações. Embora muitas das coisas vivenciadas já não são lá tão presente em minha vida, algumas delas ocupam um espaço especial em meu coração. A visão de mundo que construí, as artes com as quais me identifico, as viagens que quero realizar e as paixões que carrego comigo, por mais que tenham uma mudança ou outra, são coisas das quais não abro mão. Independente do que aconteça, certos elementos são o que me movimentam nessa vida e, por isso, pretendo guarda-los comigo enquanto puder. Ainda bem que percebi a tempo que, no fim, minha paixão por cabelos é uma dessas coisas.

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Virginia Valbuza

Escritora, artista e feminista. Sereia nas horas vagas. Conheça minha newsletter: https:/virginiavalbuza.substack.com/