Reflexões isoladas #3: do jeito que o diabo gosta

Ideias aleatórias que me surgem na quarentena

Virginia Valbuza
7 min readJun 16, 2020
Imagem que faz referência a um ritual de bruxaria, com duas mãos segurando o crânio de um animal, velas e abóboras ao redor

“Um dos shows mais satânicos da história da humanidade”. Quem você acha que leva um título desses nas costas? Eu sempre pensei que seria digno de alguma banda de black metal ou, no mínimo, de algum gênero similar. A galera vive falando de Satã e de queimar igreja, nada mais justo, né?

Mas não foi bem isso que o papa pensou lá em 1990, quando ele fez essa declaração. Em uma época que Iron Maiden já cantava sobre o número da besta e Venom já estampava seus discos com Baphomet, quem ganhou o título de turnê mais demoníaca foi ninguém menos que Madonna, com a Blonde Ambition Tour.

O motivo? Ah, essa é a melhor parte. Para os setores conservadores da sociedade, Madonna merecia boicote, excomunhão e até mesmo ameaça de prisão por uma encenação artística de masturbação.

O fato da cantora fazer uma performance em que ela toca a própria virilha e dá umas sarradas teatrais em travesseiros ao final de Like A Virgin era tão ameaçador que até o papa entrou na história. Afinal, como todos sabem, não existe mesmo nada mais diabólico que uma boa siririca.

Essa turnê não só revolucionou o mundo do show business e provou porque Madonna é a rainha do pop, mas também nos mostrou o que acontece quando uma mulher ousa reivindicar o próprio prazer. Tem algo de muito assustador ao perceber que, numa época em que sexo já era usado midiaticamente para o lucro, ser mulher e fazer uma performance sobre masturbação dá até voz de prisão. Os boicotes e perseguições contra a cantora, com ares de caça às bruxas, escancara bem o quanto a sexualidade ainda é vista por preceitos morais antiquados e reacionários.

E é ainda mais apavorante pensar que toda essa polêmica, digna de época da Inquisição, tem, na verdade, apenas 30 anos.

Por mais assustadora que seja essa constatação, não é mera coincidência que mulheres ainda sofram perseguições tão comuns a eras passadas. Nossa concepção sobre sexualidade e feminilidade (que está dentro de um espectro branco, heterossexual e cisgênero) ainda é impregnada das noções terroristas construídas na época da inquisição. A figura da bruxa, libertina e insubordinada, não só foi fundamental para instituir uma nova ordem social a partir do terror à fogueira, mas também segue no imaginário coletivo até hoje e continua cumprindo sua função na determinação dos papéis sociais.

E mais do que a destruição de práticas mágicas e do fortalecimento do catolicismo, a caça às bruxas foi uma política genocida dos setores poderosos da época para a consolidação de um novo sistema econômico que só prosperou graças à máxima exploração dos corpos, do trabalho e da vida das mulheres e de diversos povos originários colonizados — perseguidos e executados dentro da mesma lógica de terror.

A relação entre os novos papéis sociais impostos e a acumulação primitiva de capital é o que permeia o livro O Calibã e a Bruxa, de Silvia Federici. Referência nos estudos sobre feminismo e luta de classes, Federici esmiúça nesta obra toda sua pesquisa sobre como o trabalho de reprodução da vida social, tão importante para a manutenção do sistema e delegado às mulheres sem qualquer remuneração, toma forma a partir de políticas misóginas de perseguição, tortura e execução.

Através da construção de uma nova concepção de feminilidade, baseada na figura dócil, obediente e virginal, a caça às bruxas confina as mulheres no ambiente doméstico, permite a exploração de sua mão de obra não-assalariada e, com isso, estimula o desenvolvimento do novo sistema emergente — o capitalismo. Como a própria autora relata:

(…) “surgiu um novo modelo de feminilidade: a mulher e esposa ideal — passiva, obediente, parcimoniosa, casta, de poucas palavras e sempre ocupada com suas tarefas. Esta mudança começou no final do século xvii, depois de as mulheres terem sido submetidas a mais de dois séculos de terrorismo de Estado.”. (p. 205)

E completa:

“Sobre esta base, foi possível impor uma nova divisão sexual do trabalho, que diferenciou não somente as tarefas que as mulheres e os homens deveriam realizar, como também suas experiências, suas vidas, sua relação com o capital e com outros setores da classe trabalhadora. Deste modo, assim como a divisão internacional do trabalho, a divisão sexual foi, sobretudo, uma relação de poder, uma divisão dentro da força de trabalho, ao mesmo tempo que um imenso impulso à acumulação capitalista” (p. 233)

O controle sobre a sexualidade e os direitos reprodutivos também foram fundamentais para consolidar esta nova lógica social. Dentro de um contexto de baixa densidade populacional após a peste negra, e com a necessidade de muita mão de obra para ocupar os novos postos de trabalho, planejamento familiar deixa de ser um assunto de domínio particular e passa diretamente para as mãos do Estado.

Aborto e métodos contraceptivos são terminantemente proibidos, mulheres perdem o protagonismo no que diz respeito à concepção e parto e até mesmo práticas e posições sexuais são determinadas institucionalmente. Relegadas à meras reprodutoras e cuidadoras de novos trabalhadores do sistema, as mulheres vão perdendo seu espaço na sociedade.

“A caça às bruxas não só condenou a sexualidade feminina como fonte de todo mal, mas também representou o principal veículo para levar a cabo uma ampla reestruturação da vida sexual, que, ajustada à nova disciplina capitalista do trabalho, criminalizava qualquer atividade sexual que ameaçasse a procriação e a transmissão da propriedade dentro da família ou que diminuísse o tempo e a energia disponíveis para o trabalho”. (p.349–340)

Imagem da autora Silvia Frederici segurando um pano de prato que diz “isso que chamam de amor é trabalho não pago”
Silvia Federici, por Coletivo Sycorax

No fundo, toda a tática terrorista contra mulheres e povos originários foi fundamental para o estabelecimento desta nova ordem e a construção da base social que até hoje nos influencia. Voltada para o controle dos corpos trabalhadores e a maximização dos lucros, a lógica capitalista altera toda a dinâmica social e mantém seu domínio ao longo de todos esses anos, se adaptando conforme as alterações históricas. Como coloca Federici,

“O que ainda não foi reconhecido é que a caça às bruxas constituiu um dos acontecimentos mais importantes do desenvolvimento da sociedade capitalista e da formação do proletariado moderno. Isso porque o desencadeamento de uma campanha de terror contra as mulheres, não igualada por nenhuma outra perseguição, debilitou a capacidade de resistência do campesinato europeu frente ao ataque lançado pela aristocracia latifundiária e pelo Estado, em uma época na qual a comunidade camponesa já começava a se desintegrar sob o impacto combinado da privatização da terra, do aumento dos impostos e da extensão do controle estatal sobre todos os aspectos da vida social. A caça às bruxas aprofundou a divisão entre mulheres e homens, inculcou nos homens o medo do poder das mulheres e destruiu um universo de práticas, crenças e sujeitos sociais cuja existência era incompatível com a disciplina do trabalho capitalista, redefinindo assim os principais elementos da reprodução social” (p. 294)

Muitos séculos separam o período da inquisição da Blonde Ambition Tour, mas, infelizmente, as noções de controle social e sexual daquela época ainda reverberam ao longo de todos esses anos. Ao reivindicar o próprio prazer naquele fatídico ano de 1990, Madonna assume o papel desta mulher rebelde e dona de si que tanto assusta o status quo e, no imaginário coletivo, merece mesmo é a fogueira.

Mesmo dentro de um contexto onde o sexo é ferramenta de alcance midiático e de lucro, falar do prazer da mulher fora da dominação patriarcal é, de alguma forma, uma afronta ao sistema. Afinal, quando a base dele é a exploração de nossos corpos, ousar ser dona do próprio gozar talvez seja mesmo um perigo.

Os tempos mudam e os paradigmas também, mas, no fundo, o capital faz o possível para manter suas estruturas de dominação. Apesar dos avanços na discussão sobre liberdade sexual, os mecanismos de controle ainda são ferrenhos contra as mulheres e não só as relega a papéis de subordinação, mas também as nega o conhecimento ao próprio corpo e ao próprio prazer.

E, na real, se você também não é um homem branco, cis e hetero, provavelmente sente na pele como sua sexualidade é instrumentalizada e desumanizada por esse maldito sistema.

Imagem da cantora Madonna no palco, com microfone próximo à boca enquanto faz uma pose com um dos braços pra cima e o outro segurando na altura do cotovelo. Ela usa seu famoso espartilho bege de sutiã de cone

Mesmo com todos as conquistas, a luta por libertação ainda é constante. Neste contexto de ataque direto aos movimentos sociais e do crescimento do conservadorismo, é preciso ficar ainda mais alerta e não arredar o pé. A lógica de perseguição ganha novas características, mas a intenção de nos manter recatadas e submissas ao poder do capital ainda é a mesma.

A figura da mulher libertina e desobediente ainda é usada como ferramenta de terror, mas, para o azar das classes dominantes, ela também tem se tornado um tanto inspiradora. E apesar das inúmeras tentativas de reprimir nossas vozes e explorar nossos corpos, seguimos revoltosas e resistentes contra o patriarcado na luta por emancipação de todas as diferentes classes, raças, corpos, gêneros, sexualidades e identidades.

Reivindicar o direito ao corpo e antagonizar frente a ideologia dominante é um processo acirrado e doloroso. Mas, mediante a exploração desenfreada, que outra opção nos resta se não destruir esse sistema opressivo?

Por isso mesmo me assumo, com muito orgulho, enquanto uma mulher rebelde, selvagem e insubordinada. Por isso também me reconheço como figura de oposição, de questionamento e de enfrentamento.

E por fim, em uma sociedade que demoniza a mulher dona de si e do próprio gozo, eu faço mesmo é questão de ser bem satânica.

Referência: FEDERICI, Silvia. O Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Editora Elefante, 2018. Tradução por Coletivo Sycorax.

--

--

Virginia Valbuza

Escritora, artista e feminista. Sereia nas horas vagas. Conheça minha newsletter: https:/virginiavalbuza.substack.com/