Reflexões isoladas #4: um bom lugar pra ler um livro

Ideias aleatórias que me surgem na quarentena

Virginia Valbuza
4 min readJul 12, 2020
Foto aérea de uma praia com casas na orla e o mar ao fundo
por KLM

A imagem é vívida e deliciosa em minha mente.

As palavras fluindo na tela a frente, uma nova história tomando forma e, acima da escrivaninha, a janela emoldurando o oceano em toda sua plenitude. Incluo também um passeio com os dogs pela orla da praia, onde penso melhor como finalizar meu novo livro, e a preparação de uma fornada de brownies ao entardecer.

O devaneio fica ainda melhor quando meu companheiro chega com os preparativos do jantar e se instala ao meu lado em nossa linda cozinha rústica. E para coroar, a noite termina com uma cervejinha ou mesmo um cappuccino na varanda, enquanto as ondas ao fundo fazem a trilha sonora de nossa nova rotina.

Com o passar dos anos, esse cenário deixou de ser aquela ideia fértil e descabida da adolescência e se tornou, aos poucos, um possível horizonte para minha vida.

Às vezes sou comedida e imagino uns pezinhos de alecrim para incrementar a fantasia. Outras, eu já vou mais longe e sonho logo com plantas frutíferas e quatro cachorros correndo pelo amplo quintal de uma casinha gostosa no litoral de Cuba.

Independente dos detalhes, uma morada de frente para o mar e uma carreira como escritora, por mais distante que seja da minha atual realidade, me parece uma boa ideia para o futuro.

Afinal, quem não gostaria de morar com a pessoa amada num local paradisíaco e ter um trabalho criativo? Uma vida de pequenas aventuras e de grandes realizações não seria um sonho se tornando realidade? Aliás, uma cena tão incrível dessas não parece até bom demais para ser verdade?

Pois parece mesmo. E talvez porque é realmente bom demais para ser verdade.

A real é que, por mais que este cenário seja minha grande meta, sei que estou cada dia mais distante de concretiza-lo.

Posso me esforçar com as palavras e produzir um bom trabalho com a escrita, mas a maturidade me mostrou que uma carreira próspera na área não passa de ilusão para boa parte dos aspirantes, como eu. E vamos combinar que, mesmo com toda dedicação e excelência que tenho em meu trampo, meu salário proletário jamais me permitiria um imóvel na orla da praia.

E se isso já não é um balde de água fria suficiente em meus sonhos, eis que enfrentamos uma crise global sem precedentes e sem muitos indícios de melhora.

O que antes parecia um plano para o futuro se torna, depois de tanto caos, apenas mais um objetivo distante e inalcançável.

Ter os pés no chão quanto a possibilidade de um sonho é importante, mas nem sempre é confortável. Por mais desolador que seja, preciso entender que, talvez, minha vida nunca vire esse cenário paradisíaco com livros para lançar e brownies para assar.

Aliás, a chance de minha fantasia se tornar real é ínfima, e não tem muito o que posso fazer a respeito. E a não ser que a gente marque a tomada dos meios de produção para semana que vem e acabe de vez com a exploração e a mais-valia, o que me resta é compreender que, infelizmente, nem tudo é possível.

É nessas horas que a bad bate forte e eu preciso segurar as pontas para não desabar. Quando realização perde espaço e o vazio toma conta, é difícil não se deixar abalar.

Mas é justamente nesses momentos que preciso de espaços de reflexão como esses para sacar que isso não é o fim do mundo. Apesar de não estar na trilha para vistas litorâneas e publicações literárias, meu atual caminho também me reserva muitas outras oportunidades e experiências tão incríveis quanto.

Pode até parecer estranho, mas não ter uma linha de chegada a cruzar, para mim, é uma enorme potência. E ainda que o processo tenha seus altos e baixos, me sinto orgulhosa de quem sou e de onde cheguei até agora — mesmo sem minha casinha em Cuba.

No fim, entender que realização pessoal não está nos grandes feitos, mas sim nos pequenos detalhes, é um tanto libertador.

Fazer brownies com o som das ondas ao fundo deve ser mesmo maravilhoso, mas nem por isso minhas fornadas interioranas perdem o seu glamour. Entre tentativas culinárias malucas e guerras de travesseiro com meu companheiro, vou acalmando meu coração e percebendo que, na real, essa rotina aconchegante e espontânea também é um grande sonho meu. E ainda que meu trabalho ou meu endereço não sejam exatamente o esperado, são eles quem me garantem essa vida de amores e criações que sempre quis.

Meus pés de alecrim e as janelas oceânicas talvez não passem mesmo de fantasia, mas ao menos minha realidade é boa demais e também é de verdade. E isso já é o suficiente.

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Virginia Valbuza

Escritora, artista e feminista. Sereia nas horas vagas. Conheça minha newsletter: https:/virginiavalbuza.substack.com/