Realização

Um terceiro conto

Virginia Valbuza
6 min readApr 11, 2021

No começo, quando me perguntavam como era viajar por aí e viver em minha própria Kombi, eu sempre respondia que era a realização de um sonho. Quando apareciam as chatices do trabalho com redes sociais e aquele monte de hate para cima do meu canal do Youtube, eu sempre ignorava os comentários tensos e me concentrava nas mensagens construtivas de verdade. E até mesmo nos perrengues, quando não achava um maldito chuveiro quente para tomar banho ou precisava esperar bons quilômetros para mexer em meu coletor menstrual, mantinha a calma e tentava ver o lado positivo das coisas. Eu estava feliz demais para me importar com pequenos detalhes.

Sempre soube que, no momento em que colocasse o pé na estrada, a adrenalina tomaria conta e eu seria hipnotizada por esta nova rotina. Sempre soube também que, independentemente das dificuldades, abandonar tudo e ir atrás de uma boa aventura era o grande sonho da minha vida. Só nunca imaginei que algum dia, sem motivo aparente, esse encantamento chegaria ao fim.

Percebo que vai ser mais um dia daqueles quando a luz do sol entra de mansinho pela janela e uma tristeza avassaladora toma conta de mim. Me obrigo a levantar, guardar a cama e liberar mais espaço no interior do veículo, mas ainda assim me sinto levemente claustrofóbica. Recorro à porta lateral, esperando sentir certo alívio ao me abrir para a paisagem natural, mas é inútil. Nem o azul do céu ou os cumes esverdeados ao fundo conseguem me tirar esse aperto no peito. E, para completar, ainda sinto as dores musculares da minha tentativa desastrosa de trekking do dia anterior. Pensei que teria um bom conteúdo para o canal, mas só acabei com muitos roxos e a certeza de meu completo fracasso como ser humano. Que grande merda.

Nem mesmo o ritual de passar um café com as primeiras horas de sol tem o efeito de antes. Dou uma olhada nos afazeres do dia enquanto adiciono leite à minha bebida e, para meu desgosto, vejo que preciso de uma nova foto para o Instagram. Bosta. Ignoro todo o meu desconforto latente e posiciono minha caneca à frente, fazendo um click apenas dela em minhas mãos e a vista arborizada de fundo. Tenho certeza de que meus seguidores vão adorar essa merda, mas, sinceramente, odeio cada vez mais esse processo. Toda essa artificialidade do trabalho em mídias digitais acaba com a magia do negócio. Além disso, ainda preciso editar um vídeo até o final da semana, fazer novas tomadas para o próximo, criar um post para meu blog pessoal e pensar qual será o conteúdo exclusivo disponível para os membros. E, obviamente, já estou atrasada em meus prazos. Caralho, onde eu estava com a cabeça quando fui me meter em tudo isso?

Ainda me lembro da empolgação que senti quando subi o primeiro vídeo para o canal. Eu nem entendia muito de edição, mas fiz um conteúdo curto e simples sobre como adaptei minha Kombi vermelhinha em uma casa móvel, pronta para uma nova vida. Mal dormi naquela noite, planejando os novos temas e criações, e nem imaginava que essa brincadeira toda poderia, um dia, se tornar meu ganha-pão. Mas as visualizações foram crescendo, as mensagens de apoio chegavam em peso e, para minha surpresa, tinha cada vez mais gente embarcando nesta aventura comigo. Logo chegaram as parcerias, os patrocínios e as campanhas de financiamento, e eu estava nas nuvens com toda aquela repercussão. Sentia enfim que não estava sozinha em minha loucura, sabe? Ver que mais pessoas também queriam largar tudo e pôr o pé na estrada era um grande refúgio, e ler mensagens que diziam o quanto eu as inspirava a fazer o mesmo era o mais emocionante de toda essa história. Eu me sentia mais viva que nunca.

Pra ser sincera, não sei dizer quando foi que essa emoção deixou de ser o suficiente para mim, mas deixou. Não sei também quando foi que abandonei meu hábito de leitura noturna e o substituí por chorar em meu travesseiro até dormir, mas aconteceu. Não sei nem quando percebi que esse projeto já não trazia mais sentido para minha vida, mas uma hora percebi. E foi assim que, sem mais nem menos, acordei um dia e me dei conta do quanto estava infeliz com quem eu era e com a rotina que levava.

A ansiedade me invade enquanto tento criar a postagem para aquela maldita foto de caneca. Ignoro o número de notificações no canto, que parece gritar comigo, e me concentro no que quero expressar naquele momento. Chega a ser irônico o quanto sonhei em ser comunicadora digital e agora, que enfim alcancei o patamar, me faltam palavras pra me comunicar. Respiro fundo, dou mais um gole em meu café e, pela primeira vez em muito tempo, considero ser realmente verdadeira com as pessoas do outro lado da tela. Será que chegou a hora de dizer que, diferente do que eu mesma pensei, essa vida não é nenhum mar de rosas? Será que finalmente terei coragem pra admitir que, no fundo, não estou mais feliz com minha escolha?

Não tenho muita certeza do que dizer quando começo a esboçar algumas palavras, mas deixo que meus dedos fluam pelo mini teclado e me ajudem nesta tarefa. Quero que eles escrevam sobre a solidão que sinto, sobre as relações que não consigo cultivar desde que comecei a viajar e também sobre a carência que sempre me bate de um toque, um carinho, um chamego e uma presença querida. Quero também que eles falem dos medos que vivencio, das tristezas que insistem e dar o ar da graça, das dificuldades em ser uma mulher sozinha na estrada e, principalmente, dos momentos mais obscuros em que não sei para onde correr. E quando já estourei o limite de caracteres permitidos, ainda penso sobre como quero compartilhar as angústias que me tomam em pleno volante, os ataques ansiosos que me assaltam no cair da noite, a saudade que sinto de ter amigos e parentes ao meu lado e, mais do que tudo, sobre o vazio que pensei ter resolvido com esse projeto, mas que ainda existe aqui em meu peito.

Só percebo as lágrimas que correm por minhas bochechas quando meu colo já está encharcado. Um soluço gutural brota de minha garganta e, sem saber o que fazer, só deixo o choro cair e me tomar por completo. Nem ao menos sabia que era capaz de guardar tanta dor dentro de mim, mas uma hora ela teria que transbordar, né? As questões continuam rodando minha mente e aumentando o fluxo de lágrimas, e começo a pensar se é possível morrer desidratada após um episódio como esse. Afinal, como pode alguém se sentir tão deprimido justo quando tudo que sempre quis se tornou realidade? Ou será que, no fundo, eu dei um pulo maior que a perna e este sonho não era para mim? Permito que meu corpo trema com o pranto e que minha boca solte impropérios aos quatro ventos, sem qualquer controle, até enfim me acalmar.

Os olhos ainda estão embaçados quando volto a mirar a tela de meu celular. Encaro o post inacabado, me desafiando a expor toda a dúvida que tenho sobre aquilo que sempre tive tanta certeza. Tenho um espasmo ou outro ao levar a caneca à boca e buscar meu último gole de café, mas descubro tarde demais que ele está intragável. Chego a sentir uma leve ânsia, mas tenho minhas dúvidas se ela surge apenas por causa da bebida. O botão de publicar está ali no canto, hipnótico, tentando me seduzir a todo custo. Será que devo? Caralho, será mesmo que devo?

Uma última lágrima me escapa quando, em um estalo, tomo minha decisão. Sinto câimbras nos dedos e um aperto horrível no peito, mas só paro com o botão de apagar quando a caixa está totalmente em branco, sem mais nenhuma palavra de meu desabafo anterior. Ligo o modo piloto automático de meu cérebro e adiciono apenas umas três ou quatro hashtags ridículas, que em nada representam meu estado de espírito — mas ao menos agradam a clientela. Afinal, não é assim que as redes funcionam?

Talvez algum dia eu crie coragem para expor tudo o que me aflige e sair deste ciclo de infelicidade, mas hoje não é este dia. Hoje é mais um daqueles dias em que preciso me lembrar de que, num trabalho em que engajamento é o que me garante a próxima refeição, ser vulnerável e verdadeira é um luxo que não posso me dar. Então engulo a decepção que sinto, aperto o maldito botão de publicar e finjo que está tudo bem, como já estou me acostumando a fazer.

Nunca pensei que, neste processo de tentar me encontrar, no fim eu estaria ainda mais perdida. Mas a vida na estrada não se cansa de me surpreender.

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Virginia Valbuza

Escritora, artista e feminista. Sereia nas horas vagas. Conheça minha newsletter: https:/virginiavalbuza.substack.com/