Observação

Um conto

Virginia Valbuza
4 min readJan 26, 2021

A primeira coisa que vejo é o brilho de seu cabelo acobreado reluzindo com o pôr do sol. Sinto meu coração palpitar quando sua figura surge à minha frente, trotando pela pista e balançando seu lindo rabo de cavalo. Reparo que sua calça colorida é a mesma da semana passada, que salienta bem as curvas de seu quadril e deixam apenas uma faixa de seu tornozelo à mostra. Ela continua vindo em minha direção, mantendo um ritmo ofegante de corrida, enquanto eu tento desacelerar meus passos apenas para vê-la por mais um tempinho. E quando nossos corpos se cruzam pelo caminho, sinto seus olhos tom de mel sobre mim e, subitamente, perco o fôlego.

Faço o possível para manter a calma, mas admito que está um pouco mais complicado do que esperava. Continuo em minha breve caminhada, preocupado apenas em não demonstrar qualquer nervosismo, mas a respiração não colabora muito. Penso que, nesta altura do campeonato, eu já deveria ter me acostumado com essa sensação. Mas é incrível como mesmo depois de tanto tempo, ela sempre me surpreende. Caralho, como pode uma mulher me deixar assim?

Confesso que nunca pensei em manter uma rotina de exercícios como essa. Vir até uma pista de caminhada e ficar zanzando por ela feito um idiota? Não, isso nunca esteve em meus planos. Mas depois que a vi, com seu cabelo explodindo em tons de laranja, foi impossível me afastar. Quando senti algo diferente correndo por todo meu corpo numa breve troca de olhares, sabia que não poderia perde-la de vista. Foi apenas isso que precisei para mudar completamente minha rotina, me adequar aos seus horários e vir aqui, andar igual a um tonto, apenas para vê-la mais um pouco.

Desde então, tudo é sobre ela. A comida não tem o mesmo sabor, meu sono não é mais o mesmo, meu trabalho não rende mais a mesma coisa… só consigo mesmo pensar nela. Já até decorei o horário em que ela chega à pista, o tempo que leva em seu aquecimento e como ela gosta de iniciar sua corrida. Já descobri também como ela prefere roupas estampadas que a valorizam, como ela sempre prende seu rabo de cavalo na mesma altura, antes de começar a se aquecer, e até como ela cantarola baixo as mesmas músicas quando diminui seu ritmo. Sei também como ela pega sempre a mesma vaga no estacionamento, mesmo que tenha que esperar por isso, e só encerra seu treino quando já começa a escurecer. Ainda não sei seu nome, mas não tem problema. Mesmo assim já sinto a ansiedade bater toda vez que a vejo.

Ela se aproxima mais uma vez, completando mais uma volta na pista. Ao cruzar meu caminho, mantém os olhos no horizonte desta vez, mas eu não posso evitar. Volto meu olhar ao seu rosto ofegante, às gotas de suor que se acumulam sobre seu peito e ao seu belo cabelo. O sol já está sumindo e ele assume outro tom nessa iluminação, e isso me fascina. O coração volta a palpitar e preciso de muita força para me manter são, mas sei que é em vão. Hoje é enfim o dia que me apresentarei a ela, e nem toda a calma do mundo pode me preparar para este momento.

Até ensaiei ao espelho exatamente o que dizer e como me aproximar. Só de pensar neste encontro sinto o corpo inteiro tremer em excitação. Penso no que vai passar por sua cabeça ao me ver, se ela vai saber de fato quem sou e se vai me reconhecer. Penso como vai se sentir quando enfim sairmos desta pista besta e tivermos coisas mais interessantes para fazer do que este monte de exercício. Talvez ela até ache que toda a resistência adquirida a ajude em meus planos futuros, mas sei que será em vão. E quer saber? Até me divirto com a imagem. Espero mesmo que ela tente se sobressair. Eu vou adorar coloca-la de volta em seu lugar.

A escuridão já inunda o espaço quando me aproximo de seu carro. Esperei tanto por isso que mal consigo me conter. A ansiedade me consome, mas preciso manter a calma. Depois de tudo, não posso deixar essa oportunidade escapar. Tem que ser ela, sei disso. E quando enfim ouço o som de seus tênis contra o asfalto, tenho a certeza de que estou pronto para este momento.

Só descobri seu nome após alguns dias, através da manchete do jornal. Uma linda foto de seu corpo em decomposição estampa a primeira página, e eu a adiciono às demais assim que chego em casa após o trabalho. A reportagem ainda relembra todas as outras que passaram por minhas mãos, e me admiro como nenhum desses idiotas sequer suspeita quem seja o autor destas obras. Melhor assim. Pra falar a verdade, já até estou de olho em outro cabelo acobreado e prefiro mesmo que a polícia continue perdida sobre quem vem transformando estas moças ruivas em belos cadáveres.

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Virginia Valbuza

Escritora, artista e feminista. Sereia nas horas vagas. Conheça minha newsletter: https:/virginiavalbuza.substack.com/