Negação

Um segundo conto

Virginia Valbuza
5 min readFeb 8, 2021

- Isso é verdade, filha? Me diz que isso não é verdade.

Sinto o corpo inteiro gelar ao ouvir esta pergunta. As poucas palavras de minha mãe são mais doloridas do que imaginei, mas faço o possível para controlar minha angústia e não deixar todo o meu nervosismo transparecer. Até cheguei a fantasiar com este momento em meus delírios, onde eu enfim contaria a verdade e tiraria este peso de minhas costas. Mas, agora que a hora chegou, percebo que não estou preparada para esta conversa e sinto o terror tomando conta.

Uma parte de mim quer ser sincera e enfim quebrar essa barreira. Uma parte de mim quer muito ignorar o que os outros dizem e me aceitar de verdade. Mas, lá no fundo, ainda tem uma voz na minha cabeça que manda muito bem em me convencer do contrário.

Insistente e autoritária, essa voz repete diariamente que estou machucando minha família e que a culpa é toda minha. Mesmo contra minha vontade, ela me grita que é errado ser quem sou e sentir o que sinto, e que eu deveria é ter vergonha de mim mesma. E, por mais que não queira dar ouvidos a essa voz maldita, sempre acabo derrotada e questionando meu próprio desejo.

Às vezes até penso que seria mais fácil enterrar meus sentimentos e simplesmente ser a garota que todos esperam que eu seja. Às vezes, quando a dor é tão intensa que não consigo dormir, imagino como as coisas seriam mais simples se eu não fosse eu. Mas advinha? Eu não posso. Por mais que eu tente, eu não posso ser outra garota.

E sabe por quê? Pois, no fundo, eu não quero me esquecer dela e nem do sabor dos seus lábios.

Sempre tive muito medo do que aconteceria se ela soubesse sobre meu segredo, então nunca lhe disse nada. Preferi deixar a barriga gelar, a respiração acelerar e o peito apertar em silêncio, sem que ela desconfiasse da paixão que me consumia por dentro. Eu a queria tanto que chegava a doer, e já perdi as contas das noites que passei entre lágrimas até o dia raiar. Mas, mesmo com o coração dolorido e a ansiedade batendo, eu permanecia calada. Apesar de tudo, até mesmo meu desespero parecia mais seguro que o mundo real.

Qualquer coisa me parecia mais segura que o mundo real.

Mas naquele dia, enquanto nossa música favorita tocava ao fundo, foi ela quem me tirou o medo e também o chão. Quando ela colocou meus cabelos atrás da orelha, quando seus dedos tocaram abaixo do meu queixo e quando enfim diminuímos a distância entre nossos corpos, foi a primeira vez em que realmente me senti viva.

Nem em meus maiores sonhos eu imaginei a perfeição daquele beijo, e precisei me agarrar ao seu corpo para ter certeza de que não sairia flutuando pelos ares. Naquele momento não existia mais nada e nem ninguém ao redor, apenas nós duas e nossos lábios unidos. E achei que nada poderia estragar esta alegria.

Mas foi este o meu grande erro. Porque tinham muitas, mas muitas outras pessoas ao nosso redor.

Entre lágrimas, minha mãe aguarda uma resposta de mim. Seu olhar, tanto acusatório quanto suplicante, deixa claro o que ela espera que eu diga nessa situação. E toda essa pressão só me deixa ainda mais perdida e encurralada.

Tento organizar as ideias e formular o que dizer, mas me falta voz. A coragem que senti naquele dia, nos braços dela, já me abandonou a muito tempo. Caralho, o que eu faço? Não era assim que eu queria me assumir pra minha família. Não queria ser pega de surpresa, ainda mais com minha mãe em prantos desse jeito.

Será que é isso o que me aguarda? Será que eu nunca poderei ser eu mesma em paz?

São míseros segundos de silêncio entre a pergunta da minha mãe e a minha resposta, mas aquilo me parece uma eternidade. Sinto o estômago revirar em aflição enquanto minha mente pensa em milhares de coisas ao mesmo tempo. Tenho muito medo de tudo o que pode acontecer depois dessa conversa, e fico ainda mais apavorada em perceber que não estou preparada para nenhuma das muitas hipóteses desastrosas que já imaginei anteriormente.

Quando percebo o que sai de minha boca, sinto que morri por dentro. O rosto de minha mãe relaxa com minha negação e ela solta uma exclamação aliviada. Ela então me deixa sozinha no recinto e vai correndo contar a novidade para as amigas do Whatsapp, sem nem perceber o quanto me sinto angustiada. Meus lábios tremem de vontade de chorar, mas continuo impassível. Se fui capaz de mentir sobre minha própria essência, eu também sou capaz de segurar a merda de uma lágrima ou outra.

É quando deito a cabeça no travesseiro ao final do dia que, enfim, deixo o choro fluir. Já não tenho intenção de cair no sono, então só deixo a dor exalar por meus poros e correr por minhas bochechas. Revejo a cena com minha mãe mais uma vez, pensando o que seria diferente se eu fosse mais corajosa, mas isso só me deixa pior. Me sinto covarde, envergonhada comigo mesma. Mas o que posso fazer? Não tive segurança alguma para me expor, então como esperar um resultado diferente? Só me resta expurgar toda essa merda em lágrimas e me preparar para mais uma manhã de olhos inchados e tristeza profunda.

Às vezes me pergunto se algum dia essa angústia terá fim e eu poderei viver minha própria verdade, como sempre sonhei. Às vezes, quando as coisas parecem um pouco mais promissoras, imagino como seria se minha família me aceitasse assim mesmo, sem tirar nem pôr. Mas, em momentos como esse, isso tudo me parece impossível. Parece apenas que eu jamais serei perdoada por não ser o que esperam de mim.

E então eu me lembro daquele dia. A música ao fundo, o calor de nossas peles e o gosto do seu beijo.

É aí que tudo fica diferente dentro de mim. Invadida pela alegria desta lembrança, parece que nada mais me importa. Apesar do aperto no peito, consigo enfim controlar meu choro e calar a maldita voz em minha mente. E, tomada pela esperança de dias melhores pela frente, adormeço quando enfim reencontro a coragem que conheci nos braços dela.

Talvez a minha família nunca me aceite como eu realmente sou. Talvez, diferente do que esperava antes, minha casa nunca se torne um espaço seguro de verdade. Sei que as chances são grandes de que eu me torne mais uma nas estatísticas de pessoas expulsas de casa apenas por não ter medo de amar. E não posso negar: isso me dói mais do que consigo mensurar.

No entanto, agora isso não vai mais me parar. Independente do que aconteça e do quão dolorosa seja essa cisão, ao menos agora eu sei que posso encontrar refúgio em seus lábios.

E esse, sem dúvidas, é um refúgio pelo qual estou disposta a lutar.

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Virginia Valbuza

Escritora, artista e feminista. Sereia nas horas vagas. Conheça minha newsletter: https:/virginiavalbuza.substack.com/