Brincando de faz-de-conta

Virginia Valbuza
5 min readDec 17, 2022

--

O que aconteceria se eu fosse homem por um dia?

Reflexo em uma poça d’agua que espelha, de cabeça para baixo, a imagem de um homem andando na rua com uma máscara cobrindo a boca
Photo by Gabriella Clare Marino on Unsplash

— Deixa eu ver esse descritivo de novo?

Meu companheiro se sentou ao meu lado e, junto comigo, foi relendo todas as funções e pré-requisitos que o trabalho pedia. E ele até comentou, entre uma coisa ou outra, que achava aquela vaga “a minha cara”.

Eu, no entanto, não consegui falar nada. Minha mente ficou à milhão, resgatando minhas competências profissionais para ver o que se encaixava naqueles tópicos. E ela ficou ainda mais maluca ao perceber que, em boa parte dos casos, eu cumpria com o que era pedido.

Voltei ao início do descritivo e, com meu próprio dedo, fui fazendo um V imaginário nas linhas em que eu me garantia nas exigências.

Foi check atrás de check. Nem eu conseguia acreditar.

Terminei aquela lista com o coração na boca. Será que era isso mesmo? Será que tinha encontrado a minha vaga dos sonhos?

E ainda melhor: será que eu tinha o que era necessário para me inscrever?

Eureka, participante de Rupaul’s Drag Race, dizendo “stakes are high, hearts are pounding, buttholes are clenched.

Não demorou muito para uma onda de ansiedade tomar conta de mim e, de repente, me inundar de dúvidas e inseguranças.

E a emoção que senti, sonhando com um trabalho que adoraria fazer, logo virou uma maldita tormenta.

Fui minha própria advogada do diabo e questionei aquilo que eu não queria responder: será que eu realmente cumpria com todas as exigências? E será que eu estava pronta para exercer aquela função?

Eu sabia que tinha muito potencial. Isso não dava para negar. Mas será que só potencial era o suficiente?

Comecei a pensar que tinha me precipitado no meu próprio julgamento. Voltei à lista de pré-requisitos e já olhei os meus checks anteriores com outros olhos. Reli as atribuições daquela função e, sendo mais realista comigo mesma, me questionei se eu realmente tinha competência para tudo aquilo.

Percebi que era hora de aceitar que, talvez, eu não fosse tudo isso para uma vaga daquele cacife. E fui obrigada a enfrentar a dura verdade de que meu sonho, que pareceu mais palpável por um instante, continuava no campo da impossibilidade — de onde ele não sairia.

Daí eu me lembrei de uma coisa muito importante nessa história toda: de que eu sou mulher.

E de que, como reportagens ilustram, nós sentimos uma pressão absurda na hora de nos candidatarmos para um emprego — a ponto até de desistirmos de uma vaga.

O motivo? Essa cobrança desgraçada pela perfeição que já conhecemos bem. É comum que mulheres sintam que só podem se candidatar a um processo seletivo quando atingem 100% dos pré-requisitos. Enquanto isso, homens em geral o fazem com mais tranquilidade com apenas 60% das exigências.

Os números me chocam e me enfurecem, mas não me surpreendem. Eu já vivi tempo suficiente num mundo dominado por homens medíocres para saber que é assim mesmo que as coisas acontecem.

E eu até poderia discorrer sobre como as oportunidades de formação e profissionalização são diferentes entre homens e mulheres. Eu poderia dissertar sobre como o sistema patriarcal nos destrói diariamente, ou mesmo gastar horas em exemplos de como somos obrigadas a fazer o triplo de esforço sem ter nem a metade do reconhecimento.

Mas eu só consigo mesmo é pensar o quanto deve ser delicioso ter esse nível de autoconfiança.

Imagina que beleza não sentir essa necessidade horrorosa de ser um MacGyver só para concorrer a um emprego? Imagina o poder de simplesmente tentar a sorte, mesmo com medo? E imagina como deve ser libertador acreditar nas próprias capacidades, sem ninguém te diminuindo o tempo inteiro?

Imagina o que não é possível alcançar só por confiar no próprio taco?

Resolvi então fazer um teste e realmente imaginar tudo isso. Coloquei a cabeça pra sonhar um pouquinho e lancei: como as coisas seriam se eu fosse um homem?

Home branco, de longos cabelos loiros e com uma camisa branca aberta no peito sendo iluminado por um holofote de abrindo os braços de maneira dramática

Fui longe na fantasia e me permiti ser um cara bem confiante e seguro de si. Não considerei que ele teria todas as habilidades que tenho hoje, mas pelo menos uma parte delas entrou para a brincadeira.

Assim, como um homem cisgênero, branco e bem heterotop, eu voltei ao descritivo da vaga. E então, no topo do meu privilégio social, eu reavaliei minhas competências e refiz os checks mentalmente.

Confesso que foi um negócio de outro mundo não ter dúvidas das minhas capacidades. Eu relia os pré-requisitos e, mesmo que não os cumprisse com maestria, eu já me considerava apto praquele trabalho sem muitos problemas. Foi demais.

E nem precisei chegar ao fim da lista para ter certeza do que fazer. Quando vi que eu parecia fazer o perfil da vaga, o dedo até coçou pra correr pro botão de inscrição.

É até engraçado: enquanto mulher eu talvez não cumprisse 100%, mas também não estava tão longe assim dessa porcentagem. Mas ali, no alto da minha heterotopisse, eu nem liguei de chegar próximo dessa margem. Eu tinha certeza da minha qualificação, mesmo cumprindo um número menor das exigências descritas.

Caralho, hein. É assim que um cara desses se sente o tempo todo?

Gente, com só metade dessa autoestima eu já seria imparável. Imagina com ela inteira?

Homem branco em um ambiente festivo que levanta a cerveja em sua mão e grita “hey, i love me too!”

Quando o faz-de-conta acabou e eu deixei de ser um homem branco cis hétero, voltei meus pés ao chão e meus olhos à tela do celular. O processo seletivo ainda estava ali, esperando uma resposta minha. E eu, sem aquele véu da fantasia, voltei a sentir o peso da pressão social.

Senti o coração acelerar e a ansiedade tomou conta de mim mais uma vez. Que merda.

O que eu deveria fazer?

Pensei um pouco e percebi que, talvez, essa história de que eu não tinha o que eles buscavam para esse trabalho fosse real. Talvez, por maior que fosse meu potencial, ainda não fosse minha hora.

Foi duro entender que, por mais que esta fosse a vaga dos sonhos, ela talvez não saísse mesmo do campo da impossibilidade.

Mas, dessa vez, não seria por medo de me inscrever que isso ia acontecer. Nem dessa vez e nenhuma outra mais.

--

--

Virginia Valbuza

Escritora, artista e feminista. Sereia nas horas vagas. Conheça minha newsletter: https:/virginiavalbuza.substack.com/